terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Os empresários como figuras literárias (texto integral)



Quando Urbano Tavares Rodrigues escreveu O Adeus À Brisa não está a referir-se obviamente às performances da empresa concessionária de auto-estradas, cujo acrónimo Brisa pertence mais ao fundador da empresa, Jorge de Brito, do que a qualquer romance ou fluxo de ar ameno. Mas quando se escreve: “já reparou na afinidade entre estragos e estrategos?”, como o faz Maria Gabriela Llansol em O Senhor dos Herbais podemos estar a falar de vários mundos desde o militar até ao dos negócios.
Ao longo deste tempo, enquanto instigadores da actividade produtiva, têm sido retratados, pelos escritores por exemplo, um pouco ao modo como os Gregos viam o comércio. Este era apenas ganância e, portanto, uma actividade desprovida de Sentido. O distanciamento com que este universo da vida é apreendido radica em algumas das suas leis, regras e máximas. Como refere a filósofa Hanna Arendt, “no domínio comercial a divisa ““negócios são negócios” já contém em si mesma a desonestidade do especulador sem escrúpulos”.
O dinheiro sempre foi visto com ambivalência. O poeta e dramaturgo Almeida Garrett em As Viagens na Minha Terra perguntava “Quantas almas é preciso dar ao diabo e quantos corpos se têm de entregar no cemitério para fazer um rico neste mundo” “Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar a miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?” “cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis” e Camilo Castelo Branco, em “Onde está a felicidade?”, respondia que a felicidade estava “debaixo de uma tábua onde se encontram cento e cinquenta contos de réis”. O que poderia ter sido mais uma frase para a campanha do finado Banco Privado. Ou então sugerem-se os versos de João de Deus, em “Campo de Flores”: “O dinheiro é tão bonito,/tão bonito, o maganão!/Tem tanta graça, o maldito,/Tem tanto chiste, o ladrão!/O falar, fala de um modo.../ Todo ele, aquele todo.../E elas acham-no tão guapo!/Velhinha ou moça que veja, / Por mais esquiva que seja,/Tlim!/ Papo”.

Da literatura de Oitocentos a Pessoa
Segundo Alcino Pedrosa em Os Empresários na Literatura Económica Portuguesa de Finais de Oitocentos, “nas imagens mas correntes, o empresário figura como o campeão dos valores propagados pela doutrina liberal, como o defensor da liberdade de iniciativa, da limitação da intervenção do Estado, como um indivíduo capaz de racionalmente ter uma conduta, que articule os seus interesses pessoais com o bem-estar geral, gerando riqueza. Enfim, a personificação por excelência do homo economicus”. Acrescenta, “a ideia dominante na literatura económica deste período é a do empresário como protagonista sem rival da racionalidade económica. Dela resulta uma imagem do empresário como homem de sucesso (ou bem sucedido), que constitui uma as características fundamentais da ideologia económica a Regeneração”.
Como assinalou Maria Filomena Mónica, os industriais (e porque não mesmo incluir os empresários enquanto banqueiros, comerciantes) são figuras menores na literatura portuguesa. São quase sempre retratados com feroz ironia, distanciado desprezo ou então, como acontecia com os neo-realistas, como o símbolo do mal.
O industrial que numa das obras de Eça de Queiróz, é Teodorico de A Relíquia, vai trabalhar para uma fábrica de fiação na Pampulha depois de ser expulso de casa pela tia. Torna-se industrial como castigo pela queda de um anjo que afinal era um demónio. Em Alves & Ca, o comércio é o cenário para um enredo de paixão e traição. E Eça conheceu, em casa de Ramalho Ortigão, o industrial João Burnay, que era o gestor da Empresa Industrial Portuguesa, e que dizia que o seu único inimigo pessoal era Hegel.
O primeiro romance em que a industrialização é o pano de fundo foi escrito por Abel Botelho. Em Amanhã surge um patrão da indústria têxtil. O filho dos Carvalho Meireles faz uma fábrica no jardim do palácio e explora sem uma ponta de vergonha e de comiseração os seus trabalhadores. Ramalho Ortigão usou As Farpas para demolir os industriais e os capitalistas. Escreveu em 1876: “nos chefes de indústria, ausência absoluta de espírito de classe, de amor da profissão. Uma vez enriquecido, o industrial procura tornar-se capitalista, homem de negócios, influente político, comendador, visconde, director de bancos, gerente de companhias. E considera a fábrica um desdouro, uma “mesalliance”, um ganha-pão subalterno, com a vantagem principal de representar em cada eleição um peso de duzentos votos, a troco dos quais ele procura colocar-se sob a protecção do Estado e sob o favor dos governos”.
Em O Livro do Desassossego, Fernando Pessoa é mais enigmático, e por isso talvez mais verdadeiro. Para ele, “o dinheiro é belo, porque é uma libertação” e “nunca se deve invejar a riqueza, senão platonicamente; a riqueza é liberdade”. Mas, por outro lado, Vicente Guedes, o heterónimo que habita este livro, confessa: “nunca tive dinheiro para poder ter tédio à vontade...”.
Os romancistas portugueses contemporâneos escusam-se à abordagem do mundo económico e financeiro e fogem à virulência de um Ramalho Ortigão que nas suas As Farpas execrava o industrial, e numa carta aberta retratava-o como “parvenu pretensioso e rídiculo”, “ambicioso inepto”, “marido de uma pateta que quer ser baronesa”, “pai de um imbecil que quer ser marialva”. Há, porém, em O Anjo Ancorado de José Cardoso Pires, um olhar sage do sobre o mundo dos negócios: “a burguesia de 1900 que, em caso de falência, punha luto e deixava crescer as barbas, suava honra como termo-chave, termo sagrado, como termo-tipo.(...) Ah, mas o pior veio depois. Vieram duas guerras, nada menos que duas, e logo à primeira, com a subida à Banca de candongueiros e novos-ricos, o termo foi-se. À segunda guerra, pior. Os candongueiros que estavam defenderam-se á custa de leis e de aparatos de interesse público dos candongueiros que queriam vir. E passaram a usar palavras mais de raposa e menos lobo: correcto, capaz, prestigioso, termos em que não se empenha tanto a moral do indivíduo”.
Mas na obra de um escritor também pode estar inscrita as mudanças que perpassam pelo mundo. Como dizia António José Saraiva, os versos de Correia Garção (1724-1773), como leitura  “pouco interesse actual de facto oferecem” mas têm um grande “significado histórico-literário”. Neles se podem vislumbar “os novos costumes assinalam já a presença de nova gente na direcção da sociedade, a erosão subterrânea, invisível mas profunda, dos velhos costumes feudalizantes” e  “ burguesia portuguesa está, sem dúvida, a surgir na história com a fisionomia que a caracterizará durante cerca de dois séculos”.

O após revolução de 1974
Entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975 deu-se uma Revolução económica com a nacionalização de milhares de empresas. Olga Gonçalves em Ora esguardae, que pretende ser o registo em directo dos tempos pós-25 de abril, tem uma única frase que se pode relacionar com as alterações de propriedade e de estatuto social do empresário: “O cabrão do patrão cavou com a massa, e a gente que se desenrasque”, diz uma das personagens. Em 1976 Luís Represas, voz do grupo Trovante, cantava os versos de Francisco Viana: “O homem que explora o homem/ chamem-lhe empreendedor/ é um homem lobo do homem/ é mesmo explorador”.
Em alguns livros de António Lobo Antunes sente-se a presença, uma espécie de coro grego narrativo que nos assoma com pormenores, de uma família, que é uma autêntica saga dos negócios financeiros portugueses. Tem de tudo. Amor ódio, paixão, saber, trabalho, traição, livros antigos, cheques de reis emoldurados. É, contudo no Tratado das Paixões da Alma que se pode vislumbrar o tempo em que, por ausência de grandes e mediáticos magnates, as FP-25 exerciam a sua violência sobre obscuros gestores médios de empresas públicas ou privadas. No livro, porém, descreve-se o atropelamento de um banqueiro pelo grupo de acção armada : “E o cavalheiro imaginou a cadela de coleira vermelha ou o banqueiro barrigudo, de pasta na mão, a atravessarem sem pressa, para o portão da moradia, a rua de plátanos do Estoril, e o jipe conduzido pelo Sacerdote a arrancar de súbito da esquina, a crescer, de faróis acesos, no alcatrão que o reflexo das folhas assemelhava a uma lâmina de água, imaginou o ruído dos travões e a ebulição do motor, imaginou o banqueiro a encolher-se ainda, de palmas abertas, recuando uma passo...”.
Vergílio Ferreira prefere o registo profético. Em Nome da Terra coloca na boca de um agitador de consciência, Salus, um manifesto contra a depredação, sobretudo a capitalista, onde ressoa a célebre comparação de Freud de que o dinheiro seria mais excremento que oiro. Diz Salus: “mas falo mesmo dos tubarões do capital, banqueiros atolados em moedas que são as fezes, o excremento da ganância e da vileza, grossos empresários que quereis empresariar o mundo, o céu com a vossa fumarada, as almas com as vossas cadeias e os rios e os peixes deles com a vossa matéria excrementícia”.
Os romances na voz das suas personagens também disseminam pequenas lições de gestão. Não são as buzzwords que fazem a riqueza dos chamados gurús e consultores, mas pequenas lições de bom senso. O Avô, comerciante e personagem Tocata para Dois Clarins de Mário Cláudio, recorre ao navio, metáfora antiga, que já encapelava a República de Platão, para dar uma pequena lição de gestão: “Dirigir um estabelecimento é como tripular um navio, certificando-se a gente de que lado sopram os ventos, da direcção da agulha de marear, do estado das marés, da disciplina da equipagem, do nível de funcionamento das geringonças que, sem nunca parar, vão labutando, na casa das máquinas, e só assim, meus amigos, sob o plácido olhar do Grande Arquitecto do Universo, é que conseguiremos atingir o porto seguro”.

Henry Burnay e os escritores
Em Portugal, Henry Burnay foi um alvo privilegiado para jornalistas e escritores. Raul Brandão recorda nas suas Memórias, o projecto de um livro sonhado por Fialho de Almeida e que nunca chegou a escrever, chamar-se-ia A Cloaca e “o primeiro capítulo está feito: é uma festa da alta sociedade no claustro da Batalha... Aproveito a época do Burnay e do marquês da Foz, a luta da finança, quando o Foz tinha palácios e o Moser carro a duas parelhas. Deram-se festas esplêndidas... Tenho as figuras todas, homens de negócios e jornalistas, o Mariano e o Navarro... um dia alugam um comboio e vão dar uma festa no claustro da Batalha. É uma ceia formidável, com mulheres de grande roda, políticos, literatos e, dentro do claustro, entre a grandeza e a severidade daquelas pedras, caem de bêbados e mijam pelos cantos, nos túmulos». Fialho de Almeida chamou-lhe «pulgão polimórfico» e Eça de Queirós ter-se-á inspirado em Burnay para a criação do banqueiro Cohen de Os Maias.
Quem não se cansava de fazer do Conde de Burnay o alvo das suas caricaturas e dos seus dichotes, era Rafael Bordallo Pinheiro. Nos seus jornais parecia obcecado pelo Grande Plutocrata, o homem que na imaginação popular, como refere Maria Filomena Mónica, «transformara-se no capitalista por excelência, judeu na origem, internacional nos contactos e dissoluto nos costumes». Na edição de A Paródia de 18 de Dezembro de 1901 retrata-o como um ser longíneo com uma grande mão direita a segurar o mapa de Portugal, enquanto na esquerda se vê um banco de madeira onde o banqueiro se preparava para colocar o país, enquanto ao lado soavam as seguintes estrofes:
Estrangeiro, banqueiro, onzeneiro, folião,
Tem Portugal inteiro apertado na mão:
bancos, províncias, oiro, hotéis, homens, governos,
Querelas, concessões, coroas, céus, infernos,
Companhias, jornais, dinheiros fortes, fracos,
Ministros, imbecis, capelas e tabacos,
Virgens de Santo António, o mapa, os usurários,
Festas nacionais, misérias, centenários,
o clero, a fome, o sangue, o riso... Tudo agarra!
Não é mão, é tenaz! Não é tenaz, é garra.
Para se perceber a dimensão do império, socorremo-nos de um texto de Ramalho Ortigão, comentado por João de Sousa Câmara: “querem dinheiro? Aqui está às ordens: podem ir passando os recibos”. E ergue, acrescentamos nós, a casa bancária Henry Burnay & Ca. “Querem fazendas? Aqui têm amostras à escolha”. Arrenda, adiantamos nós, o Palácio de Cristal e organiza mais tarde os grandes Armazéns Hermínios. (...) “Desejam navegar, serve-se-lhes navegação a vapor!”. E logo levantava a Companhia de Navegação Thétis no Porto. “Convém-lhes segurar alguma coisa, têm aqui companhia que segura tudo!”. E imediatamente criava uma sociedade de seguros.

Alfredo da Silva e os escritores
Por sua vez, Alfredo da Silva, uns dos rutilantes empresários portugueses, não pau para muita obra literária. Joaquim Paço d`Arcos referencia-o nas “Memórias” ao descrever o seu casamento, para o qual o dono da CUF foi convidado: «uma assistência numerosa, reunião mundana, fardas rútilas, casacas sóbrias, toilettes vistosas de senhoras. No fundo da capela o industrial Alfredo da Silva, sem resguardo  pela solenidade decorrente. E o som grave do órgão não abafava, inteiramente o metal da sua voz irreverente a baralhar negócios e maldizer». Aliás, foi em Alfredo da Silva que o escritor se iria inspirar para a personagem Costa Vidal, um industrial e banqueiro que surge na peça de teatro “O Cúmplice” e na série de romances que viriam a constituir a Crónica da Vida Lisboeta. Esta personagem tem «algo do grande lutador» e «sem a sua obesidade e sem a sua truculência (...) desempenha no mundo capitalista um papel semelhante e tem a fibra com que o dirigente da CUF construiu um império». De facto, segundo o escritor, Alfredo da Silva tinha um «feitio chicaneiro» que no entanto não apagava as suas «grandes qualidades de industrial dinâmico e empreendedor».
Como nos anúncios da focopiadoras, muitas vezes a cópia suplanta o original, é uma  das forças do “kitsch”. José Gomes Ferreira dá nota da surpresa no seu diário, “Dias Comuns I - Passos Efémeros”, de súbito, o grande capitalista incorpora os traços da “charge” neo-realista. Escreve em nota de 4 de Junho de 1966: “Diante da Fábrica de  Tabaqueira, em Albarraque , os deuses do neocapitalismo triunfante ergueram uma estátua solene ao Capital de Sempre na forma de Alfredo da Silva . É o símbolo mais grosseiro que vi, até hoje, virado para o Sol: um homem empertigadamente gordo e grosso, de fraque, bengala na mão direita e charuto (sim, CHARUTO!) na mão esquerda. Uma autêntica caricatura de bronze insolente como que saída dos primeiros romances neo-realistas que, pelo visto, não são tão inventados como se nos afiguram agora, em pleno momento de idílio sórdido do neo-socialismo (desossado do marxismo) com o neocapitalismo...”. Está muita próxima da descrição do homem mais rico em A Floresta de Sophia de Mello Breyner: “este era um homem atarracado e feio com duas grossas bochechas de sapo que tremiam dos dois lados da cara. Toda a gente na cidade sabia que ele não se interessava pelo dinheiro”.
Curiosa é a relação, mecenática, entre o empresário Manuel Vinhas e o escritor Luiz Pacheco, conhecido pela sua crónica falta de dinheiro. Como se escreve em “Mano Forte”, um recolha de cartas e postais de Luiz Pacheco, este refere que a edição a “Crítica de Circunstância” seria “paga pelo dr. Vinhas, da Portugália, cervejas”. Estávamos em dezembro de 1964. Sete anos depois, Luiz Pacheco dedicava-lhe a primeira edição dos seus “Exercícios de Estilo”. Em 1975, quando Manoel Vinhas tinha os seus bens nacionalizados e vivia no Brasil, Luiz Pacheco escreveu: “do mecenas Manoel Vinhas falo pelo que me toca. Durante aos, mais de dez, auxiliou-me em dinheiros, renda de casa pontualmente paga, bolsa de estudo em livros, máquina de escrever, a minha charrua, oferecida. Sem em conhecer pessoalmente, apenas alertado para a minha difícil situação económica por um Amigo comum”.













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