segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Os empresários vistos pelos escritores III

Como assinalou Maria Filomena Mónica, os industriais (e porque não mesmo incluir os empresários enquanto banqueiros, comerciantes) são figuras menores na literatura portuguesa. São quase sempre retratados com feroz ironia, distanciado desprezo ou então, como acontecia com os neo-realistas, como o símbolo do mal.
O industrial que numa das obras de Eça de Queiróz, é Teodorico de A Relíquia, vai trabalhar para uma fábrica de fiação na Pampulha depois de ser expulso de casa pela tia. Torna-se industrial como castigo pela queda de um anjo que afinal era um demónio. Em Alves & Ca, o comércio é o cenário para um enredo de paixão e traição. E Eça conheceu, em casa de Ramalho Ortigão, o industrial João Burnay, que era o gestor da Empresa Industrial Portuguesa, e que dizia que o seu único inimigo pessoal era Hegel.
O primeiro romance em que a industrialização é o pano de fundo foi escrito por Abel Botelho. Em Amanhã surge um patrão da indústria têxtil. O filho dos Carvalho Meireles faz uma fábrica no jardim do palácio e explora sem uma ponta de vergonha e de comiseração os seus trabalhadores. Ramalho Ortigão usou As Farpas para demolir os industriais e os capitalistas. Escreveu em 1876: “nos chefes de indústria, ausência absoluta de espírito de classe, de amor da profissão. Uma vez enriquecido, o industrial procura tornar-se capitalista, homem de negócios, influente político, comendador, visconde, director de bancos, gerente de companhias. E considera a fábrica um desdouro, uma “mesalliance”, um ganha-pão subalterno, com a vantagem principal de representar em cada eleição um peso de duzentos votos, a troco dos quais ele procura colocar-se sob a protecção do Estado e sob o favor dos governos”.

A crise permanente: gestão, futebol e cozinha


A Gestão faz parte da vida, portanto nada do que é a vida lhe é estranho. Não é, pois, de surpreender que surjam cada vez mais ideias e livros que procuram basear no desporto, na culinária, na arte, as lições e os exemplos para melhorar essa arte-ciência-magia que é a gestão de empresas (utilizamos empresa no sentido amplo: é mais do que uma organização, é tudo aquilo que se presta à acção).

O desporto é uma mina de ouro de metáforas para os gestores porque se fala de concorrência, competição, equipa, jogo, vitória, risco, pressão. Em Portugal há o exemplo clássico de José Mourinho que se tornou uma fonte inesgotável para conferências, cursos, workshops, teses de doutoramento sobre liderança e coaching em que se faz uma (nem sempre) sábia maionese de teorias de gestão, psicologia comportamental e futebol. Em Espanha também surge nas mesmas esferas mas tendo sempre o contraponto de Josep Guardiola, ex-treinador do Barcelona.

O futebol e Brasil são indissociáveis, por isso não surpreende que dois ex-quadros superiores de O Boticário, Eloi Zanetti e Rogério Gusso, fizessem um livro ligando o futebol e a gestão (o que em Portugal se poderia chamar um oxímoro), ou seja, como é que o futebol dos relvados – porque o dos bastidores não é exemplo para ninguém - pode ajudar na prática empresarial. O objectivo é fazer com que algumas metáforas futebol sejam entendidas como conceitos análogos da moderna administração. Por exemplo, hoje no futebol moderno são importantes as chamadas “jogadas ensaiadas” (que não se reduzem às denominadas “jogadas a partir da bola parada”); também nas empresas é importante ter equipas preparadas para negociar, para prever os passos para os concorrentes, porque no jogo ou no mercado, o risco, a incerteza e o imprevisto são dados incontornáveis.


Há, porém, outras práticas que podem ser as ‘best practices’ que encantam qualquer decisor. Um dos êxitos editoriais mais inesperados nos últimos tempos é Kitchen Confidential, e publicado em Portugal pela D. Quixote. Além de ter frequentado a lista de best-sellers da Business Week, rendeu ao seu autor, o chef Anthony Bourdain, uma entrevista na Harvard Business Review. O grande tema do livro e da entrevista é que «na cozinha está-se em crise permanente», ou seja, por muito planeamento e organização que se tenha, vive-se sempre no fio da navalha. Para Anthony Bourdain há sobretudo duas razões para o sucesso do livro: “a cozinha é uma das últimas verdadeiras meritocracias, em que cada um é julgado inteiramente pela sua performance profissional. É também um dos últimos sítios profissionais politicamente incorrectos onde cada um pode dizer o que quiser em qualquer momento sem se considerar um comportamento a interditar como nos outros negócios”. Ou, como diria Belmiro de Azevedo, que quer ser um gestor politicamente incorrecto: “podemos ser agressivos uns com os outros na Sonae. Quando se é polido em excesso, corre-se o risco de a mensagem não passar como deve. Um grau correcto de pressão é importante. Não conheço ninguém que tenha batido recordes nos treinos”.


Há duas décadas que Peter Drucker dizia que uma grande organização de sucesso teria de parecer uma orquestra. Se a música em acto, clássica ou ‘jazz’, é facilmente admitida como uma disciplina inspiradora de métodos e formas de gestão, há outras formas artísticas, menos óbvias é certo, que podem contribuir para melhorar alguns aspectos da gestão. Para o coreógrafo Mark Morris, que define o seu trabalho de um modo singular – “o meu trabalho não é para todos, é para alguém” - a dança e o mundo dos negócios utilizam as formas criativas de um modo muito semelhante porque “a forma mais comum de criatividade é a solução de problemas”.


Entrevista com Mark Morris, «Genius at Work», Harvard Business Review, Vol. 79, nº 9, Outubro de 2001

«Management by Fire: A Conversation with Chef Anthony Bourdain, Vol. 80, nº 7, Julho de 2002.

Eloi Zanetti e Rogério Gusso, «Administração, Futebol e Cia», Negócio Editora, 2002.

Anthony Bourdain, Kitchen Confidential: Adventures in the Culinary Underbelly, Ecco Press, 2001


Filipe S. Fernandes

Publicado no Diário Económico em 2002 na coluna o Estado do Saber que era partilhada com Helena Garrido. Actualizado no parágrafo em que se refere a José Mourinho.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Os empresários vistos pelos escritores II



Segundo Alcino Pedrosa em Os Empresários na Literatura Económica Portuguesa de Finais de Oitocentos, “nas imagens mas correntes, o empresário figura como o campeão dos valores propagados pela doutrina liberal, como o defensor da liberdade de iniciativa, da limitação da intervenção do Estado, como um indivíduo capaz de racionalmente ter uma conduta, que articule os seus interesses pessoais com o bem-estar geral, gerando riqueza. Enfim, a personificação por excelência do homo economicus”. Acrescenta, “a ideia dominante na literatura económica deste período é a do empresário como protagonista sem rival da racionalidade económica. Dela resulta uma imagem do empresário como homem de sucesso (ou bem sucedido), que constitui uma as características fundamentais da ideologia económica a Regeneração”.

Em O Livro do Desassossego, Fernando Pessoa é mais enigmático, e por isso talvez mais verdadeiro. Para ele, “o dinheiro é belo, porque é uma libertação” e “nunca se deve invejar a riqueza, senão platonicamente; a riqueza é liberdade”. Mas, por outro lado, Vicente Guedes, o heterónimo que habita este livro, confessa: “nunca tive dinheiro para poder ter tédio à vontade...”.

O mito da aventura e do esforço



O elogio e o enaltecimento do esforço escondem muitas vezes a falta de planeamento, inteligência e bom senso, é a principal lição das expedições de Roald Amundsen e Robert Falcon Scott ao Polo Sul em 1912.


A conquista do Polo Sul foi, depois de alguns fracassos, disputada por duas expedições rivais, comandadas, respectivamente, pelo norueguês, Roald Amundsen, e pelo inglês Robert Falcon Scott, que partiram em outubro de 1911, separados por apenas duas semanas. Roald Amudsen e a sua equipa atingiram o Polo Sul a 14 de dezembro de 1911 e regressaram sãos e salvos; o grupo liderado por Robert F. Scott chegou a 17 de janeiro de 1912 ao ponto onde ondulava a bandeira norueguesa e estava uma carta de Roald Amudsen. No regresso os expedicionários sucumbiram à fome, ao frio extremo e à exaustão. Os corpos foram encontrados oito meses depois por uma equipa de resgate.

Entre os despojos estavam os diários de Robert F. Scott, cuja publicação foi a primeira pedra para a hagiografia deste herói moderno. Narravam-se gestos de grande coragem e abnegação. Um dos membros do grupo, que se sentiu sem forças e como um peso morto na equipa, abandonou a tenda dizendo: “Vou sair e sou capaz de demorar”, e foi morrer para longe. Robert F. Scott escrevera na última entrada do seu diário: “Enviem este diário à minha esposa”, e depois rasurou substituindo por “minha viúva”.

A expedição de Robert F. Scott parecia conter todos os ingredientes para uma saga em que se exaltasse a luta contra tudo e contra todos, a resistência, a coragem, o esforço, a superação de obstáculos até à morte. Para a história, numa espécie de vitória póstuma, acabou por ficar a epopeia dramática de Scott feita de biografias, livros de viagens, filmes, estátuas e homenagens várias.

O tempo fez o seu trabalho de depuração e enxugou os excessos. Começou-se a questionar o estilo de liderança de Robert F. Scott, a qualidade das suas decisões, as práticas que valorizavam o esforço em vez da preparação, o sacrifício em vez da simplicidade. Como escreveu o rival Roald Amundsen, “a aventura é o outro nome para a falta de planeamento”.

O sucesso de Roald Amundsen baseou-se num estudo do terreno (estudou a região durante oito meses), na experiência (já tinha passado um inverno na Antárctica e participado de excursões ao Ártico), no conhecimento (sabia que cães esquimós eram mais adequados do que os póneis escolhidos por Robert F. Scott para puxar os trenós), no equipamento (sacos de dormir forrados com peles grossas, uma cabana semipronta e várias tendas impermeáveis), no planeamento (fez várias incursões, até 85 graus de latitude, em que depositou reservas de comida).

Nas suas anotações, Robert F. Scott culpou, sobretudo, o mau tempo pelo fracasso. Mas como Roald Amundsen anotou “a vitória espera por aquele que tem tudo em ordem, é o que se chama sorte. A derrota é certa para aquele que falhou ao tomar as devidas precauções, é o que se chama azar”. Do ponto de vista de gestão, o exemplo de boa prática é a expedição de Roald Amundsen porque chegou primeiro, foi eficaz, fê-lo com facilidade, foi eficiente. Fez o seu trabalho bem feito.
Filipe S. Fernandes

sábado, 29 de dezembro de 2012

Os empresários vistos pelos escritores I


O ponto de partida em Llansol e Garrett


Quando Urbano Tavares Rodrigues escreveu O Adeus À Brisa não está a referir-se obviamente às performances da empresa concessionária de auto-estradas, cujo acrónimo Brisa pertence mais ao fundador da empresa, Jorge de Brito, do que a qualquer romance ou fluxo de ar ameno. Mas quando se escreve: “já reparou na afinidade entre estragos e estrategos?”, como o faz Maria Gabriela Llansol em O Senhor dos Herbais podemos estar a falar de vários mundos desde o militar até ao dos negócios.

Ao longo deste tempo, enquanto instigadores da actividade produtiva, têm sido retratados, pelos escritores por exemplo, um pouco ao modo como os Gregos viam o comércio. Este era apenas ganância e, portanto, uma actividade desprovida de Sentido. O distanciamento com que este universo da vida é apreendido radica em algumas das suas leis, regras e máximas. Como refere a filósofa Hanna Arendt, “no domínio comercial a divisa ““negócios são negócios” já contém em si mesma a desonestidade do especulador sem escrúpulos”.

O dinheiro sempre foi visto com ambivalência. O poeta e dramaturgo Almeida Garrett em As Viagens na Minha Terra perguntava “Quantas almas é preciso dar ao diabo e quantos corpos se têm de entregar no cemitério para fazer um rico neste mundo” “Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar a miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?” “cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis” e Camilo Castelo Branco, em Onde está a felicidade?, respondia que a felicidade estava “debaixo de uma tábua onde se encontram cento e cinquenta contos de réis”. O que poderia ter sido mais uma frase para a campanha do finado e falido Banco Privado. Ou então sugerem-se os versos de João de Deus, em Campo de Flores: “O dinheiro é tão bonito,/tão bonito, o maganão!/Tem tanta graça, o maldito,/Tem tanto chiste, o ladrão!/O falar, fala de um modo.../ Todo ele, aquele todo.../E elas acham-no tão guapo!/Velhinha ou moça que veja, / Por mais esquiva que seja,/Tlim!/ Papo”.
Filipe S. Fernandes

O anátema do comerciante


A figura do empresário é central nos últimos dois séculos



O historiador José Mattoso defende uma tese de que é a forma centrípeta do Estado central – “o centralismo em Portugal é uma constante com uma força espantosa, que quase faz desaparecer o País” - que faz com que os portugueses se tenham dedicado mais a comerciar do que a produzir. Já disse que Eça de Queiróz, quando nos Maias retratou a sociedade portuguesa do último quartel do século passado, escolheu três gerações de fidalgos arruinados, enquanto Thomas Mann, descendente de um grande negociante, escolheu os armadores Buddenbrooks, comerciantes de porta aberta.

No entanto, a história empresarial portuguesa, sem contrariar totalmente estas teses, não deixa de mostrar obras de grande arrojo, visão, vontade. Serão poucas e escassas, com excepção da epopeia das Descobertas mas que não deixou de ser sobretudo uma gigantesca operação comercial e logística. Claro que, como dizia Brecht, não foi o Imperador que fez a Muralha da China. Por outro lado, como observa o historiador E. J. Hobsbawn, “o capitalismo não serve para realizar qualquer particular selecção de produto mas sim para fazer dinheiro”.

A figura do empresário, mas suas múltiplas constelações, encarnações e figurações, é uma figura central dos dois últimos séculos. Ao longo deste tempo, enquanto instigadores da actividade produtiva, serem vistos um pouco ao modo de como os Gregos viam o comércio; era apenas ganância e, portanto, uma actividade desprovida de Sentido. Mas na América dos anos 40 já Max Horkheimer detectava os sinais de empresários como os novos heróis e como parte do star-system da sociedade de comunicação.
Filipe S. Fernandes

Fabulário de gestão


Observações  em busca dos tipos ideais baseada no conhecimento sobre a forma como muitos gestores e empresários agem e lideram.

O gestor Humpty Dumpty - é o que, tal como a personagem em Alice no País das Maravilhas, tem como lemas: "Quando eu uso uma palavra quer dizer o que eu quero que diga"; "a questão é saber quem manda...e isso é tudo".
O gestor bárbaro ou Genghis Khan - há um modelo muito querido do chefe abrasivo, que grita, que fere, que se emociona, que se comove, mas é a pura expressão de comando, é o exercício do poder pelo poder. Está muito ligado com o medo, a instituição do medo e como escreveu alguém: "Gritar a um subordinado é entrar no terreno da barbárie."
O gestor orelhas grandes ou Dumbo - "Não creio que a necessidade de ser a força dominante se faça pelo facto de se falar logo no início ou falar mais do que os outros. Não é uma das minhas vantagens. Ouvir pode ser uma vantagem competitiva", dizia Kenneth Lewis. O empresário Manuel Bulhosa dizia: “Têm de estar sempre com os olhos e os ouvidos muito abertos”.
O empresário Greta Garbo - é o que gosta de usufruir da fama, mas que recusa a luz ou o centro do palco, mas, como se diz, nem sempre se pode ser mocho e borboleta ao mesmo tempo.
O gestor libertário - Oliviero Toscani marcou a publicidade da Benetton durante os anos 80 e 90 e costumava dizer que o artista ou o gestor para ser livre tem, antes de mais, de enriquecer o patrão ou os accionistas.
O empresário príncipe encantado - é o que de um dia para o outro se transforma, num golpe de sorte prodigioso, numa das referências do star-system empresarial, que o sociólogo alemão Marx Horkheimer já observava nos anos 40 do século passado nos Estados Unidos.
O gestor poeta - é um tipo ideal raro, mas Wallace Stevens, vice-presidente de Hartford Accident and Indemnity Company, escreveu num simples verso o cruzamento entre os dois mundos: “O dinheiro é uma forma de poesia”. Ah foi um grande poeta norte-americano.
O gestor espadachim ou Zorro é o que faz da gestão uma arte com bom senso e técnica, um pouco como a esgrima, mas sem o capacete.
O gestor Maria Madalena - Abílio Diniz,ex-accionista do Pão de Açúcar do Brasil, depois de um turnaround em que demitiu milhares de pessoas, concluiu: “Tirámos gente competente dos nossos quadros, o que não é bom, mas principalmente porque a maior parte delas saiu das lojas. Resultado: o nível do serviço, que é essencial para o sucesso de um negócio como o meu, desceu”.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O nosso cônsul em Copenhaga

O conhecimento do passado pode ser um fardo, que conduz à paralisia, como se o fracasso já estivesse inscrito ou o sucesso antigo fosse uma impossibilidade actual. A história seria uma espécie de genética dos povos e, por muito que se quisesse mudar, seria muito difícil alterar o curso da coisas.
Numa paráfrase a Vasco Pulido Valente, no caso de Portugal, a solução seria óbvia: mudava-se de habitantes. Os que cá estamos emigrávamos para o Luxemburgo (não é onde temos uma das maiores produtividades da Europa?); em nossa substituição viriam ucranianos, checos, eslovacos, polacos (e não ficávamos com excelentes possibilidades com os nos países aderentes à União Europeia?). Como há algumas dificuldades práticas, talvez fosse bom conhecer o nosso passado para percebermos a razão das nossas dificuldades. Não porque o passado seja uma lição. Não se trata de reviver o passado mas de inventar um futuro. E o que passado nos pode ajudar é a determinar estratégias futuras, modelos de comportamento e acção diferentes.
No discurso dominante actualmente na complexa “doxa” composta pela retórica, política, empresarial, científica, económica e jornalística, assoma a questão das marcas portuguesas, em subir na cadeia de valor acrescentado, os produtos portugueses serem imediatamente desvalorizados quando se conhece a sua proveniência. Surgem como axiomas de uma meridiana clareza, cuja descoberta, tão óbvia, até espanta. A explicação para este estado de coisas assemelha-se à explicação que os treinadores de futebol dão quando perdem os jogos. Tem sempre a ver com algo de estranho (o campo estava demasiado molhado, ou inclinado…) de exterior ao jogo (o árbitro, o patrão da federação, o irmão da sogra do dirigente…), de sorte (o poste, a bolsa excessivamente redonda, o jogador que escorregou), etc..
Mas  o que nos diz a história? Para isso vale a pena ler o extracto de um relatório consular do cônsul-geral em Copenhaga (Dinamarca): “A nossa sardinha tem-se desacreditado nêste mercado, por causa do pouco escrupulo d´uma parte dos nossos exportadores, em enviarem a mercadoria sem se preocuparem com uma perfeita apresentação e que seja conforme as amostras. Tem-se, repetidamente, cometido o abuso de oferecer um bom produto como amostra e depois fornecem as encomendas d`uma qualidade inferior e muitas vezes em mau estado. (…) É para lamentar também que os honestos e competentes fabricantes nunca se tivessem preocupado em fazer aqui qualquer reclame para acreditar as suas marcas, a exemplo do que fazem os franceses. É muito conhecido e afamado aqui o nome Philipe Carraud e outros, ao passo que do nosso paiz somente se conhece: SARDINHA PORTUGUESA, que para os dinamarqueses é sempre um artigo de inferior qualidade”.
Quem escreveu este extracto do citado relatório, denominado, “O Nosso Comércio Com a Dinamarca”, foi Ferreira dos Santos. Mas olhe, leitor, isto não é uma fuga de informação, não é um exemplo da nova diplomacia económica. Não é um relatório de 2003, 1992, ou 1967. Esta análise foi feita em 1926 !!!!!!
O que este texto mostra é que sempre uma ideia da estratégia a seguir. Mas também mostra de também sempre houve uma outra forma de fazer negócio. Isto é, de forma muito franca: não é possível a ninguém em Portugal fazer uma Nike, mas é possível fazer de Portugal o melhor fornecedor da Nike porque poderíamos fornecer tudo, desde o “design” até às plataformas logísticas passando pelo fabrico de produtos da multinacional norte-americana. E o exemplo não é espúrio nem é delirante. A Zara fá-lo a nível têxtil…
O nosso problema é sempre outro e que com cíclica fluência nos ataca. E a história relembra-o. Imaginámos que já somos ricos. Em 1893, Gerard du Perry escrevia na Revista das Alfândegas: “ a estas causas de estacionamento das industrias, de que resulta limitada e pouco perfeita producção accresce modernamente uma outra que com aquelles contribue para que o preço de custo do fabrico portuguez seja muito mais elevado do que nos países verdadeiramente industrializados. É o luxo. Luxo escusado nas edificações fabris e luxo insustentável na vida dos industriais em inteira desproporção com a modesta producção fabril”.
Texto publicado no Jornal de Negócios em 2003.

É essencial gerir


Mesmo que haja um só caminho, há sempre várias formas de preparar a caminhada e de o percorrer.
A história é antiga, tornou-se um exemplo canónico para inúmeros teóricos e práticos da gestão, o últimos dos quais Jim Collins e Morten T. Hansen em Great by Choice, e conta-se em dois parágrafos. Há cerca de 101 anos, duas equipas, uma liderada por Roald Amudsen e outra por Robert Scott, partiram à conquista do Polo Sul. O primeiro cumpriu o objectivo e regressou para contar enquanto o segundo sucumbiu na sua empreitada. A moral é que para um objectivo pode haver vários caminhos, formas diferentes de agir, motivar, planear, e que afinal até pode haver alternativas. Por isso talvez fosse uma boa altura para trocar umas ideias sobre gestão, como parece ser a intenção de Teodora Cardoso, presidente do Conselho de Finanças Públicas, quando disse: "É essencial gerir melhor." Por isso, talvez seja importante que no meio deste vendaval fiscal e da cacofonia europeia que se fale sobre a gestão em Portugal.
Fernando Pessoa, que podemos considerar como o primeiro teórico de gestão português, reflectiu, e com alguma minúcia, sobre os preceitos práticos da boa gestão e da excelência empresarial, e o cerne da sua preocupação era a organização, o que não deixa de ser interessante porque é hoje provavelmente uma das principais causas para as nossas dificuldades, a tão decantada competitividade do país. Para Fernando Pessoa a organização era mais do que um processo tecnológico e um conjunto de procedimentos. A sua visão estava próxima do que hoje chamamos gestão. Dizia que “a organização é, por sua natureza, um fenómeno intelectual, um trabalho de inteligência”.
Noutros textos, alguns dos quais publicados na Revista de Comércio e Contabilidade, dizia que “organizar é, essencialmente, um fenómeno intelectual. Há muitas coisas que se executam por palpite, imensas que se fazem empiricamente, pelo hábito e a experiência. Mas a organização estável, ou seja a organização propriamente dita, é um trabalho de inteligência”. No texto Processo de Organização escreveu que "sistemas, processos, móveis, máquinas, aparelhos são - como todas as coisas mecânicas e materiais - elementos puramente auxiliares. O verdadeiro processo é pensar; a máquina fundamental é a inteligência." Se alguma lição de actualidade se pode retirar destes textos de Fernando Pessoa é a sua insistência na inteligência (que é educação, que é formação, que é discernimento, que é ciência, que é subir na cadeia de valor, que é gestão e organização) como principal recurso estratégico para o nosso desenvolvimento.
Filipe S. Fernandes

Os textos citados encontram-se em Filipe S. Fernandes, “Organizem-se! A Gestão Segundo Fernando Pessoa”, Oficina do Livro, Lisboa, 2007.