As palavras como as rochas são constituídas por camadas, por
extractos, que se sobrepõem, se opõem, se supõem, se entrelaçam, se
antagonizam, e a sua decifração conta-nos uma história, situa-nos no tempo.
Neste movimento, há percursos singulares. A palavra “empreendedor” conta-nos no
seu percurso recente a odisseia da iniciativa privada e individual na nossa
história recente. A mesma palavra que hoje surge, polida e luminosa, era nos
fim dos anos 70 o eufemismo para empresário; era a fórmula escolhida no
início do seu mandato pelo Presidente da República, António Ramalho Eanes
(1976-1984) para designar os industriais, comerciantes, os proprietários de
empresas, os empresários, os patrões, tudo palavras que tinham uma conotação
negativa. Mas o PR, estava longe de imaginar que estava a dar curso a um
conceito que, nascido na Califórnia nos anos 60, se traduziria como elemento
chave para o desenvolvimento e crescimento económico. Durante muito tempo o
empreendedorismo associou-se em Portugal, até pela sua etimologia, a um
comportamento empresarial juvenil e a uma atitude de risco; o que tem a sua
razão de ser, porque numa sociedade com alguma aversão ao risco – o salazarismo
constituiu-se como um movimento anti-moderno – e em que as solidariedades
orgânicas se mantiveram durante longo tempo num peculiar desafio aos efeitos da
modernização, o risco é exactamente associado a um atributo juvenil. E um dos sinais de mudança da nossa sociedade é de
facto a associação da actividade empreendedora à inovação, ao desenvolvimento
tecnológico, à mudança e iniciativa, à criação de emprego e de oportunidades.
Na
senda do que dizia Peter Drucker os empreendedores são aqueles que criam
algo novo, algo diferente; eles mudam ou transformam valores. O espírito
empreendedor é uma característica distinta, seja de um indivíduo, ou de uma
instituição. Não é um traço de personalidade, mas sim um comportamento e suas
bases são o conceito e a teoria, e não a intuição.
A transformação e a
apropriação
Esta
figura do empreendedor e do empresário que é vista muitas vezes com uma certa
ambivalência social, cultural, moral - embora os tempos não corram de feição
para os gestores!!!. Mas há uma definição de empresário e empreendedor de João
César das Neves. Diz ele: “o empresário é aquela pessoa que tem capital que não
é seu, utiliza trabalho que não é seu, e tem ideias que não são suas, mas faz
uma realidade nova. Um país que tenha capital, trabalho, matérias-primas e
domine tecnologias, mas não tire partido do líder e visionário que é o
empresário, não consegue crescer”. Esta definição mostra o lado alquímico do
negócio e o lado especulador, a transformação, por um lado, e a apropriação,
por outro.
O
empreendedorismo e o empreendedor tornaram-se conceitos kit, prontos a ser
usados quando se quer falar de inovação, iniciativa, emprego. Por isso gostaria
de começar por esclarecer e situar a minha concepção de empreendedor e para
isso apropriei-me da definição de um dos ídolos dos empreendedores e que é
Belmiro de Azevedo, que ainda recentemente, num inquérito sobre a capacidade
empreendedora dos universitários feitos por dois investigadores do Porto (Aurora Teixeira e Todd Davey, “Attitudes of Higher Education Students to New Venture
Creation: a Preliminary Approach to the Portuguese Case”, FEP Working Papers,
nº 298, Outubro de 2008) foi colocado, juntamente com a Sonae em
primeiro lugar como modelos a seguir. Gostaria de salientar que a YDreams ficou
em quarto e o professor António Câmara em décimo primeiro lugar e estavam
incluídas empresas e gestores internacionais.
Belmiro
de Azevedo costuma dizer que não devemos confundir empresário como
empreendedor: “não são conceitos redundantes, nem variantes da semântica. São,
isso sim, personagens perfeitamente distintas. Se como Empresário identificamos
o proprietário ou o accionista de controlo de empresas, esse estatuto pode nada
ter que ver com o que eu considero ser o conceito de Empreendedor. Porque só é
empreendedor aquele que é capaz de conceber, de por em prática, e de instilar
nos que o acompanham, uma atitude de desafio permanente, de vontade de
superação da indiferença. E se assim é, o empreendedor pode, também, trabalhar
por conta de outrem, até por conta do dito Empresário. Podemos, portanto,
deparar com Empresários pouco Empreendedores. Com Empreendedores que não são
Empresários. E mesmo funcionários públicos com vocação empreendedora!”. Aliás,
um dos gestores da Sonae, que hoje também é empresário, quando estava no grupo
dizia que era “um empresário por conta de outrem”, aquele que a teoria denomina
na voragem taxinómica como intra-empreendedor, “uma pessoa empreendedora mas
dentro de uma organização”. Tanto num caso como no outro o empreendedor está a
criar e a defender postos de trabalho. E é esta concepção ampla que tanto o
contexto económico como as instituições e os grupos devem ter capacidade de
mobilizar, mas para isso têm de ter organização e capacidade de gestão porque
se não tudo se reduz a um voluntarismo estéril e quantas vezes sacrificial.
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