segunda-feira, 24 de junho de 2013

Uma campanha de propaganda segundo Fernando Pessoa

Dedicámos à psicologia da propaganda a mais curiosa e atenta consideração, sem ser por outra razão, a princípio, que não fosse científica, de mero interesse intelectual, ligado, mais recente­mente, a uma série de publicações que tencionamos fazer, algu­mas relacionadas com a propaganda neste país.
O facto primordial da propaganda, e determinante essencial da sua eficácia, parece‑nos ser a sua indirecção, digamos assim. Na proporção em que a propaganda se torna mais óbvia, mais tendên­cia tem para trair os seus propósitos. Podereis dizer que esta ideia não é nova, e que uma descoberta equivalente na ciência ou na indústria dificilmente teria garantida uma patente, pela sua novi­dade. Todavia, uma vez que é persistentemente ignorada na prá­tica, não poderá ser tenazmente, ou claramente, defendida como teoria. Se um grande número de publicações da especialidade, dedicadas ao que se pode chamar a “propaganda de exportação” coordenasse as suas actividades e as diluísse com generalidades, conseguiriam resultados muito mais avantajados do que conse­guem individualmente. Pomo‑vos esta questão: suponde que, em vez dos suplementos de comércio, digamos, de The Times e The Manchester Guardian, estes dois jornais, ou cada um por si (a hipótese de coordenação é desnecessária) publicassem, em língua estrangeira, e para uso no exterior, edições como The Times Weekly Edition, contendo uma generalidade de notícias, um grande volume de artigos em todas as especialidades, e, em complemento, a propaganda especial pretendida, considerais que estes jornais teriam menos efeito do que têm as publicações da especialidade?
Um outro exemplo. Há pouco tempo, o Sr. Grant Richards(1), o editor, na sua secção de anúncios do Times Literary Supple­ment, em cartas para esse semanário, e para mais algum, insistiu fortemente na necessidade de uma propaganda através de livros. A ideia, supomos, não deu em nada, tal como todas essas ideias, pela sua falta de um princípio condutor fulcral, tal como o apa­rentemente pouco inovador que vos apresentamos, que nulifica, necessariamente — podemos quase dizer estultifica — a sua [espaço vazio]. Nunca adquirem momentum.
Se a propaganda britânica é menos eficientemente organizada do que a alemã e a americana, se uma proposta respeitante à propa­ganda terá muito mais probabilidade de ser aceite por uma orga­nização industrial alemã ou americana, podereis perguntar‑nos, com alguma justiça, por que razão vos escrevemos agora, e não a organizações correspondentes ou similares de um desses países. A essa dúvida possível adiantaremos uma resposta parcial, ainda que satisfatória. Esta resposta será, necessariamente, dada den­tro de maior confidencialidade do que a da restante carta.
A razão é em parte pessoal (e essa é a parte que poremos de lado), e é também política e nacional. Em publicações que pretendemos trazer à luz, propomos tornar a aliança Anglo‑Por­tuguesa a base da parte respeitante à “política internacional”; desde já declinamos quaisquer esperanças que se formem quanto a sermos capazes de alterar o curso da história ou …
Não somos a favor da invasão americana da Europa, ou do exercício (ou sua retoma) da influência alemã neste país, sendo que os resultados dessa influência na Espanha, que são enormes, já são maus que chegue, pelo menos no que diz respeito a Por­tugal. Em relação à América, não pensamos que haja alguma vantagem em que a doutrina Monroe(2) venha a ser abolida, na sua acção inversa; e estamos suficientemente vigilantes, à nossa modesta maneira, e não somos tão estúpidos que tenhamos de ler nas entrelinhas do plano subtil aflorado por Walter Rathenau na entrevista com o representante de Answers.
O facto de sabermos o que esse homem é, e o que ele fez na Guerra, e o que poderá vir a fazer, o conhecimento psicológico da mistura peculiarmente perigosa de um líder industrial e de um filósofo idealista …
Tal como se diz (com verdade) que todo o criminoso comete pelo menos um erro, assim também o mais cuidadoso dos diplomatas ao menos uma vez há‑de falar demasiado.
1. Franklin Thomas Grant Richards (1872‑1948) foi um grande editor britânico de autores como G. B. Shaw, G. K. Chesterton, Alfred Noyes, John Masefield, James Joyce, mas não se distinguiu pela sua capacidade de gestão, pois alguns dos seus empreendimentos faliram. Em 1917 começou a escrever sobre publicidade no Times Literary Supplement. Foi autor de Memories of a misspent youth.
2. Em 1823, as Américas estavam a ser abaladas por movimentos independentistas nas colónias europeias, e o então presidente dos Estados Unidos, James Monroe, enviou ao Congresso americano uma mensagem em que defendia as Américas para os americanos, considerando que o continente americano não podia ser recolonizado; era inadmissível a intervenção de qualquer país europeu nos negócios internos ou externos de países america­nos, e os Estados Unidos, em troca, abster‑se‑iam de intervir nos negócios pertinentes aos países europeus. Esta ficou para a história como a doutrina Monroe.
Nota
Este texto é constituído por quatro páginas de notas dactilografadas, com algumas emendas manuscritas, quase indecifráveis, escritas em inglês. Seriam notas para uma carta em que se propunha a criação de livros e publicações que ajudassem a propaganda anglo‑portuguesa a responder à propaganda alemã e norte‑americana. Apesar do seu carácter fragmentário faz uma reflexão interessante sobre os vários modelos de propaganda.



Publicado em Filipe S. Fernandes, Organizem-se- A Gestão Segundo Fernando Pessoa, Oficina do Livro, 2007

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