sábado, 13 de junho de 2015

Fernando Pessoa: as exportações, a organização e a industrialização

O poeta brasileiro Ferreira Gullar costuma chamar-lhe "Fernando Pessoas". É uma forma de incluir no seu nome os inumeráveis heterónimos que gerou, tais como Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis, e a diversidade de obras e textos que escreveu como "O Livro do Desassossego", "O Banqueiro Anarquista", a "Mensagem" e a "Tabacaria". 
E se hoje Fernando Pessoa é um dos gigantes da literatura de língua portuguesa e um dos cânones da literatura universal, a sua curiosidade e reflexão espalharam-se para além do domínio literário. Propagaram-se pela filosofia, pelo esoterismo, pela economia. Preocupou-se com o que definia como "quotidiano e tributável". Estudou numa escola comercial na África do Sul e isso marcou muito do que fez profissionalmente. Trabalhou em muitos escritórios da baixa lisboeta como correspondente estrangeiro em casas comerciais, que, juntamente com a função de tradutor, acabaram por ser as suas profissões principais. Foi sempre um profissional liberal pois, como escreveu, "odeio todo o trabalho imposto". 
Correspondente comercial de línguas, publicitário, este indisciplinador intelectual tinha uma grande vontade empreendedora pois teve uma gráfica, uma editora de livros, fez revistas, criou várias empresas de comissões, foi inventor. Esta actividade febril tinha como objectivo, como escreveu Fernando Pessoa, "organizar em perfeito paralelismo a minha vida prática e a minha vida especulativa, de modo a que a primeira nunca possa prejudicar a segunda, à qual está, por um dever mais alto, subordinada". 
O pessoano Richard Zenith diz que os negócios interessavam a Fernando Pessoa mais pelo aspecto lúdico do que pelo lucro, mas o poeta mostrava um grande empenhamento nestes projectos. Numa carta enviada à namorada Ofélia, de 11 de Junho de 1920, queixa-se: "querem, em geral, que eu faça tudo - que, além de ter as ideias e indicar a maneira de as organizar, me ocupe também de arranjar os capitais e de fazer quanto mais for preciso para pôr a empresa em marcha".
Podemos dizer, a partir das suas ideias económicas, que Fernando Pessoa tinha uma concepção liberal da economia, defendendo a concorrência e o mercado. O seu programa de desenvolvimento para Portugal assentava na industrialização, nas exportações e na organização. O poeta tem num manuscrito uma frase lapidar sobre as empresas - estas "existem para um fim comercial, de lucro; não para um fim moral ou filantrópico" - que soa a Milton Friedman…

Industrialização
Em 1919, Fernando Pessoa publicou num jornal sidonista, A Acção, no qual participava na gestão, um texto intitulado "Como Organizar Portugal", no qual surgia como defensor da industrialização, indo um pouco contra as ideias dominantes mais agrárias e comerciais, numa época em que se deu um surto de industrialização.
Dizia ele: "como se trata de um país atrasado, e todos os países atrasados são predominantemente agrícolas, é evidente que a única transformação profissional a fazer, e que preenche todas as condições exigidas, é a industrialização sistemática do país. Educação simultaneamente da inteligência e da vontade, transformador ao mesmo tempo da mentalidade geral e do atraso material do país, o industrialismo sistemático, sistematicamente aplicado, é o remédio para as decadências de atraso. É, portanto, o remédio para o mal de Portugal". No seu espólio, encontra-se um texto incompleto sobre a política industrial.
Apesar disso, Fernando Pessoa tinha uma grande desconfiança em relação ao Estado: "Economicamente, o Estado é um mito. O Estado administra sempre mal. O Estado drena a energia particular". Noutro texto escrevia: "de todas as coisas 'organizadas', é o Estado, em qualquer parte ou época, a mais mal organizada de todas. E a razão é evidente".
Para Pessoa, a administração de Estado não deveria passar "da estrita actividade fiscal e tributária que só ao Estado compete, porque só ao Estado pode competir", mas o Estado deveria evitar a administração de comércios ou indústrias.

Exportações
Além do que escreveu, por exemplo, na Revista de Comércio e Contabilidade, são inúmeros os textos, os relatórios, as notas e os apontamentos existentes no espólio sobre o tema do comércio de importações e exportações, o que também tem a ver com a sua ligação profissional a este universo. E esta preocupação era tão mais vincada pelo facto de considerar que "a exportação portuguesa é, em relação ao que poderia ser ou tornar-se, pequena, mal orientada, e mal coordenada. Nem há concorrência interna, o que significaria actividade intensa entre os exportadores individuais, nem cooperação nacional entre eles". E ainda hoje o peso das exportações no PIB é baixo, cerca de 40% contra 80% na Bélgica ou 90% na Irlanda.
Os seus textos sobre esta temática têm a particularidade de serem tanto sobre projectos de organização empresarial virados para os mercados externos, em que muitas vezes chegam à minúcia da organização por departamentos, como reflexões sobre o serviço a prestar aos clientes, o marketing e do próprio "packing". Vai ao detalhe de mencionar "o aperfeiçoamento das embalagens", passando pela ideia de que a empresa exportadora devia comercializar os seus produtos "sob marcas próprias".
De facto, nesta época, as exportações portuguesas eram sobretudo de produtos alimentares, nomeadamente de vinhos correntes e vinho do Porto, com a agravante de serem vendidos a granel, ou seja, as exportações nacionais tinham um baixo teor de transformação industrial, com muito pouco valor acrescentado.
Por exemplo, o texto "A Essência do Comércio" é quase uma aula moderna de marketing, com a sua insistência do "foco no cliente", sobretudo quando escreve que "um comerciante, qualquer que seja, não é mais que um servidor do público, ou de um público (…) Ora, toda a gente que serve, deve, parece-nos, agradar a quem serve. Para isso é preciso estudar a quem se serve (…) temos que ver é como eles efectivamente pensam, e não como é que nos seria agradável ou conveniente que eles pensassem".
Num dos textos, "Bases para a formação de uma empresa de produtos portugueses", Pessoa imagina uma empresa a funcionar como um agrupamento de várias empresas. Com o objectivo de ter capacidade de exportação e de implantação nos mercados internacionais, as empresas estabelecer-se-iam "gradualmente no estrangeiro" e, começando pelas principais cidades, teriam lojas para a venda directa ao público de produtos portugueses.

Organização
Pessoa reflecte, aliás fá-lo com alguma minúcia, sobre os preceitos práticos da boa gestão e da excelência empresarial e o cerne da sua preocupação é a organização, o que não deixa de ser interessante porque é hoje, provavelmente, uma das principais causas para as nossas dificuldades, a tão decantada competitividade do país. 
Para Fernando Pessoa, a organização era mais do que um processo tecnológico e um conjunto de procedimentos. A sua visão ia para o que hoje chamamos gestão. Como dizia Fernando Pessoa, "a organização é, por sua natureza, um fenómeno intelectual, um trabalho de inteligência. A referida "indústria de organização" é, portanto, uma indústria intelectual", que podemos supor que seria a consultoria e, na época em que escrevia estas palavras, era fundada nos Estados Unidos a McKinsey, a consultora de estratégia mais relevante.
E noutro texto diz: "organizar é, essencialmente, um fenómeno intelectual. Há muitas coisas que se executam por palpite, imensas que se fazem empiricamente, pelo hábito e pela experiência. Mas a organização estável, ou seja, a organização propriamente dita é um trabalho de inteligência".
No texto sobre processos de organização escreveu que "sistemas, processos, móveis, máquinas, aparelhos são - como todas as coisas mecânicas e materiais - elementos puramente auxiliares. O verdadeiro processo é pensar; a máquina fundamental é a inteligência…”
No texto sobre como organizar um plano de "trading", diz: "nós, os portugueses, não temos uma tradição comercial; não somos, portanto, naturalmente e instintivamente comerciantes. Sendo assim, temos de compensar essa deficiência com uma aplicação da inteligência - com a organização, portanto.
Se alguma lição de actualidade se pode retirar destes textos de Pessoa é a sua insistência na inteligência (que é educação, que é formação, que é discernimento, que é ciência, que é subir na cadeia de valor, que é…) como principal recurso estratégico para o nosso desenvolvimento. 


Publicado no Jornal de Negócios-Weekend como título Revisitar o poeta-gestor a 29 Maio 2015

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