Quando Urbano Tavares
Rodrigues escreveu O Adeus À Brisa
não está a referir-se obviamente às performances da empresa concessionária de
auto-estradas, cujo acrónimo Brisa pertence mais ao fundador da empresa, Jorge
de Brito, do que a qualquer romance ou fluxo de ar ameno. Mas quando se
escreve: “já reparou na afinidade entre estragos e estrategos?”, como o faz
Maria Gabriela Llansol em O Senhor dos
Herbais podemos estar a falar de vários mundos desde o militar até ao dos
negócios.
Ao longo deste tempo,
enquanto instigadores da actividade produtiva, têm sido retratados, pelos
escritores por exemplo, um pouco ao modo como os Gregos viam o comércio. Este
era apenas ganância e, portanto, uma actividade desprovida de Sentido. O
distanciamento com que este universo da vida é apreendido radica em algumas das
suas leis, regras e máximas. Como refere a filósofa Hanna Arendt, “no domínio
comercial a divisa ““negócios são negócios” já contém em si mesma a
desonestidade do especulador sem escrúpulos”.
O dinheiro sempre foi
visto com ambivalência. O poeta e dramaturgo Almeida Garrett em As Viagens na Minha Terra perguntava
“Quantas almas é preciso dar ao diabo e quantos corpos se têm de entregar no
cemitério para fazer um rico neste mundo” “Andai, ganha-pães, andai; reduzi
tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse
corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie
humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos
economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos
que é forçoso condenar a miséria, ao trabalho desproporcionado, à
desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à
penúria absoluta, para produzir um rico?” “cada homem rico, abastado, custa
centos de infelizes, de miseráveis” e Camilo Castelo Branco, em “Onde está a
felicidade?”, respondia que a felicidade estava “debaixo de uma tábua onde se
encontram cento e cinquenta contos de réis”. O que poderia ter sido mais uma
frase para a campanha do finado Banco Privado. Ou então sugerem-se os versos de
João de Deus, em “Campo de Flores”: “O dinheiro é tão bonito,/tão bonito, o
maganão!/Tem tanta graça, o maldito,/Tem tanto chiste, o ladrão!/O falar, fala
de um modo.../ Todo ele, aquele todo.../E elas acham-no tão guapo!/Velhinha ou
moça que veja, / Por mais esquiva que seja,/Tlim!/ Papo”.
Da
literatura de Oitocentos a Pessoa
Segundo Alcino Pedrosa
em Os Empresários na Literatura Económica
Portuguesa de Finais de Oitocentos, “nas imagens mas correntes, o
empresário figura como o campeão dos valores propagados pela doutrina liberal,
como o defensor da liberdade de iniciativa, da limitação da intervenção do
Estado, como um indivíduo capaz de racionalmente ter uma conduta, que articule
os seus interesses pessoais com o bem-estar geral, gerando riqueza. Enfim, a
personificação por excelência do homo
economicus”. Acrescenta, “a ideia dominante na literatura económica deste
período é a do empresário como protagonista sem rival da racionalidade
económica. Dela resulta uma imagem do empresário como homem de sucesso (ou bem
sucedido), que constitui uma as características fundamentais da ideologia
económica a Regeneração”.
Como assinalou Maria
Filomena Mónica, os industriais (e porque não mesmo incluir os empresários
enquanto banqueiros, comerciantes) são figuras menores na literatura
portuguesa. São quase sempre retratados com feroz ironia, distanciado desprezo
ou então, como acontecia com os neo-realistas, como o símbolo do mal.
O industrial que numa
das obras de Eça de Queiróz, é Teodorico de A
Relíquia, vai trabalhar para uma fábrica de fiação na Pampulha depois de
ser expulso de casa pela tia. Torna-se industrial como castigo pela queda de um
anjo que afinal era um demónio. Em Alves
& Ca,
o comércio é o cenário para um enredo de paixão e traição. E Eça conheceu, em
casa de Ramalho Ortigão, o industrial João Burnay, que era o gestor da Empresa
Industrial Portuguesa, e que dizia que o seu único inimigo pessoal era Hegel.
O primeiro romance em
que a industrialização é o pano de fundo foi escrito por Abel Botelho. Em Amanhã surge um patrão da indústria
têxtil. O filho dos Carvalho Meireles faz uma fábrica no jardim do palácio e
explora sem uma ponta de vergonha e de comiseração os seus trabalhadores.
Ramalho Ortigão usou As Farpas para
demolir os industriais e os capitalistas. Escreveu em 1876: “nos chefes de
indústria, ausência absoluta de espírito de classe, de amor da profissão. Uma
vez enriquecido, o industrial procura tornar-se capitalista, homem de negócios,
influente político, comendador, visconde, director de bancos, gerente de
companhias. E considera a fábrica um desdouro, uma “mesalliance”, um ganha-pão subalterno, com a vantagem principal de
representar em cada eleição um peso de duzentos votos, a troco dos quais ele
procura colocar-se sob a protecção do Estado e sob o favor dos governos”.
Em O Livro do Desassossego, Fernando Pessoa é mais enigmático, e por
isso talvez mais verdadeiro. Para ele, “o dinheiro é belo, porque é uma
libertação” e “nunca se deve invejar a riqueza, senão platonicamente; a riqueza
é liberdade”. Mas, por outro lado, Vicente Guedes, o heterónimo que habita este
livro, confessa: “nunca tive dinheiro para poder ter tédio à vontade...”.
Os romancistas
portugueses contemporâneos escusam-se à abordagem do mundo económico e
financeiro e fogem à virulência de um Ramalho Ortigão que nas suas As Farpas execrava o industrial, e numa
carta aberta retratava-o como “parvenu pretensioso e rídiculo”, “ambicioso
inepto”, “marido de uma pateta que quer ser baronesa”, “pai de um imbecil que
quer ser marialva”. Há, porém, em O Anjo
Ancorado de José Cardoso Pires, um olhar sage do sobre o mundo dos
negócios: “a burguesia de 1900 que, em caso de falência, punha luto e deixava
crescer as barbas, suava honra como termo-chave, termo sagrado, como
termo-tipo.(...) Ah, mas o pior veio depois. Vieram duas guerras, nada menos
que duas, e logo à primeira, com a subida à Banca de candongueiros e
novos-ricos, o termo foi-se. À segunda guerra, pior. Os candongueiros que
estavam defenderam-se á custa de leis e de aparatos de interesse público dos
candongueiros que queriam vir. E passaram a usar palavras mais de raposa e
menos lobo: correcto, capaz, prestigioso, termos em que não se empenha tanto a
moral do indivíduo”.
Mas na obra de um
escritor também pode estar inscrita as mudanças que perpassam pelo mundo. Como
dizia António José Saraiva, os versos de Correia Garção (1724-1773), como
leitura “pouco interesse actual de facto
oferecem” mas têm um grande “significado histórico-literário”. Neles se podem
vislumbar “os novos costumes assinalam já a presença de nova gente na direcção
da sociedade, a erosão subterrânea, invisível mas profunda, dos velhos costumes
feudalizantes” e “ burguesia portuguesa
está, sem dúvida, a surgir na história com a fisionomia que a caracterizará
durante cerca de dois séculos”.
O
após revolução de 1974
Entre 25 de Abril de
1974 e 25 de Novembro de 1975 deu-se uma Revolução económica com a
nacionalização de milhares de empresas. Olga Gonçalves em Ora esguardae, que pretende ser o registo em directo dos tempos
pós-25 de abril, tem uma única frase que se pode relacionar com as alterações
de propriedade e de estatuto social do empresário: “O cabrão do patrão cavou
com a massa, e a gente que se desenrasque”, diz uma das personagens. Em 1976
Luís Represas, voz do grupo Trovante, cantava os versos de Francisco Viana: “O
homem que explora o homem/ chamem-lhe empreendedor/ é um homem lobo do homem/ é
mesmo explorador”.
Em alguns livros de
António Lobo Antunes sente-se a presença, uma espécie de coro grego narrativo
que nos assoma com pormenores, de uma família, que é uma autêntica saga dos
negócios financeiros portugueses. Tem de tudo. Amor ódio, paixão, saber,
trabalho, traição, livros antigos, cheques de reis emoldurados. É, contudo no Tratado das Paixões da Alma que se pode
vislumbrar o tempo em que, por ausência de grandes e mediáticos magnates, as
FP-25 exerciam a sua violência sobre obscuros gestores médios de empresas públicas
ou privadas. No livro, porém, descreve-se o atropelamento de um banqueiro pelo
grupo de acção armada : “E o cavalheiro imaginou a cadela de coleira vermelha
ou o banqueiro barrigudo, de pasta na mão, a atravessarem sem pressa, para o
portão da moradia, a rua de plátanos do Estoril, e o jipe conduzido pelo
Sacerdote a arrancar de súbito da esquina, a crescer, de faróis acesos, no
alcatrão que o reflexo das folhas assemelhava a uma lâmina de água, imaginou o
ruído dos travões e a ebulição do motor, imaginou o banqueiro a encolher-se
ainda, de palmas abertas, recuando uma passo...”.
Vergílio Ferreira
prefere o registo profético. Em Nome da
Terra coloca na boca de um agitador de consciência, Salus, um manifesto
contra a depredação, sobretudo a capitalista, onde ressoa a célebre comparação
de Freud de que o dinheiro seria mais excremento que oiro. Diz Salus: “mas falo
mesmo dos tubarões do capital, banqueiros atolados em moedas que são as fezes,
o excremento da ganância e da vileza, grossos empresários que quereis
empresariar o mundo, o céu com a vossa fumarada, as almas com as vossas cadeias
e os rios e os peixes deles com a vossa matéria excrementícia”.
Os romances na voz das
suas personagens também disseminam pequenas lições de gestão. Não são as buzzwords que fazem a riqueza dos
chamados gurús e consultores, mas pequenas lições de bom senso. O Avô,
comerciante e personagem Tocata para Dois
Clarins de Mário Cláudio, recorre ao navio, metáfora antiga, que já
encapelava a República de Platão,
para dar uma pequena lição de gestão: “Dirigir um estabelecimento é como
tripular um navio, certificando-se a gente de que lado sopram os ventos, da
direcção da agulha de marear, do estado das marés, da disciplina da equipagem,
do nível de funcionamento das geringonças que, sem nunca parar, vão labutando,
na casa das máquinas, e só assim, meus amigos, sob o plácido olhar do Grande
Arquitecto do Universo, é que conseguiremos atingir o porto seguro”.
Henry
Burnay e os escritores
Em Portugal, Henry Burnay foi um alvo privilegiado para jornalistas e
escritores. Raul Brandão recorda nas suas Memórias,
o projecto de um livro sonhado por Fialho de Almeida e que nunca chegou a
escrever, chamar-se-ia A Cloaca e “o primeiro capítulo está feito: é uma festa
da alta sociedade no claustro da Batalha... Aproveito a época do Burnay e do
marquês da Foz, a luta da finança, quando o Foz tinha palácios e o Moser carro
a duas parelhas. Deram-se festas esplêndidas... Tenho as figuras todas, homens
de negócios e jornalistas, o Mariano e o Navarro... um dia alugam um comboio e
vão dar uma festa no claustro da Batalha. É uma ceia formidável, com mulheres
de grande roda, políticos, literatos e, dentro do claustro, entre a grandeza e
a severidade daquelas pedras, caem de bêbados e mijam pelos cantos, nos
túmulos». Fialho de Almeida chamou-lhe «pulgão polimórfico» e Eça de Queirós
ter-se-á inspirado em Burnay para a criação do banqueiro Cohen de Os Maias.
Quem não se cansava de
fazer do Conde de Burnay o alvo das suas caricaturas e dos seus dichotes, era
Rafael Bordallo Pinheiro. Nos seus jornais parecia obcecado pelo Grande
Plutocrata, o homem que na imaginação popular, como refere Maria Filomena
Mónica, «transformara-se no capitalista por excelência, judeu na origem,
internacional nos contactos e dissoluto nos costumes». Na edição de A Paródia
de 18 de Dezembro de 1901 retrata-o como um ser longíneo com uma grande mão
direita a segurar o mapa de Portugal, enquanto na esquerda se vê um banco de
madeira onde o banqueiro se preparava para colocar o país, enquanto ao lado
soavam as seguintes estrofes:
Estrangeiro, banqueiro,
onzeneiro, folião,
Tem Portugal inteiro
apertado na mão:
bancos, províncias,
oiro, hotéis, homens, governos,
Querelas, concessões,
coroas, céus, infernos,
Companhias, jornais,
dinheiros fortes, fracos,
Ministros, imbecis,
capelas e tabacos,
Virgens de Santo António,
o mapa, os usurários,
Festas nacionais,
misérias, centenários,
o clero, a fome, o
sangue, o riso... Tudo agarra!
Não é mão, é tenaz! Não
é tenaz, é garra.
Para se perceber a
dimensão do império, socorremo-nos de um texto de Ramalho Ortigão, comentado
por João de Sousa Câmara: “querem dinheiro? Aqui está às ordens: podem ir
passando os recibos”. E ergue, acrescentamos nós, a casa bancária Henry Burnay
& Ca. “Querem fazendas? Aqui têm amostras à escolha”. Arrenda, adiantamos
nós, o Palácio de Cristal e organiza mais tarde os grandes Armazéns Hermínios.
(...) “Desejam navegar, serve-se-lhes navegação a vapor!”. E logo levantava a
Companhia de Navegação Thétis no Porto. “Convém-lhes segurar alguma coisa, têm
aqui companhia que segura tudo!”. E imediatamente criava uma sociedade de
seguros.
Alfredo
da Silva e os escritores
Por sua vez, Alfredo da
Silva, uns dos rutilantes empresários portugueses, não pau para muita obra
literária. Joaquim Paço d`Arcos referencia-o nas “Memórias” ao descrever o seu
casamento, para o qual o dono da CUF foi convidado: «uma
assistência numerosa, reunião mundana, fardas rútilas, casacas sóbrias, toilettes vistosas de senhoras. No fundo
da capela o industrial Alfredo da Silva, sem resguardo pela solenidade decorrente. E o som grave do
órgão não abafava, inteiramente o metal da sua voz irreverente a baralhar
negócios e maldizer». Aliás, foi em Alfredo da Silva que o escritor se iria
inspirar para a personagem Costa Vidal, um industrial e banqueiro que surge na
peça de teatro “O Cúmplice” e na série de romances que viriam a constituir a
Crónica da Vida Lisboeta. Esta personagem tem «algo do grande lutador» e «sem a
sua obesidade e sem a sua truculência (...) desempenha no mundo capitalista um
papel semelhante e tem a fibra com que o dirigente da CUF construiu um
império». De facto, segundo o escritor, Alfredo da Silva tinha um «feitio
chicaneiro» que no entanto não apagava as suas «grandes qualidades de
industrial dinâmico e empreendedor».
Como nos anúncios da
focopiadoras, muitas vezes a cópia suplanta o original, é uma das forças do “kitsch”. José Gomes Ferreira
dá nota da surpresa no seu diário, “Dias Comuns I - Passos Efémeros”, de
súbito, o grande capitalista incorpora os traços da “charge” neo-realista.
Escreve em nota de 4 de Junho de 1966: “Diante da Fábrica de Tabaqueira, em Albarraque , os deuses do
neocapitalismo triunfante ergueram uma estátua solene ao Capital de Sempre na
forma de Alfredo da Silva . É o símbolo mais grosseiro que vi, até hoje, virado
para o Sol: um homem empertigadamente gordo e grosso, de fraque, bengala na mão
direita e charuto (sim, CHARUTO!) na mão esquerda. Uma autêntica caricatura de
bronze insolente como que saída dos primeiros romances neo-realistas que, pelo
visto, não são tão inventados como se nos afiguram agora, em pleno momento de
idílio sórdido do neo-socialismo (desossado do marxismo) com o
neocapitalismo...”. Está muita próxima da descrição do homem mais rico em A Floresta de Sophia de Mello Breyner:
“este era um homem atarracado e feio com duas grossas bochechas de sapo que
tremiam dos dois lados da cara. Toda a gente na cidade sabia que ele não se
interessava pelo dinheiro”.
Curiosa é a relação,
mecenática, entre o empresário Manuel Vinhas e o escritor Luiz Pacheco,
conhecido pela sua crónica falta de dinheiro. Como se escreve em “Mano Forte”,
um recolha de cartas e postais de Luiz Pacheco, este refere que a edição a
“Crítica de Circunstância” seria “paga pelo dr. Vinhas, da Portugália,
cervejas”. Estávamos em dezembro de 1964. Sete anos depois, Luiz Pacheco
dedicava-lhe a primeira edição dos seus “Exercícios de Estilo”. Em 1975, quando
Manoel Vinhas tinha os seus bens nacionalizados e vivia no Brasil, Luiz Pacheco
escreveu: “do mecenas Manoel Vinhas falo pelo que me toca. Durante aos, mais de
dez, auxiliou-me em dinheiros, renda de casa pontualmente paga, bolsa de estudo
em livros, máquina de escrever, a minha charrua, oferecida. Sem em conhecer
pessoalmente, apenas alertado para a minha difícil situação económica por um
Amigo comum”.